terça-feira, 22 de maio de 2012

João Pereira de Matos (cinco côdeas e um não)


I - PARAGRANO
Ruminação e loucura: quero ser ouvido, dizer, a todos & cada um, dos mundos possíveis ou até impossíveis, do bizarro & anacrónico, do intricado ou lhano, arte d'inventar chegando ao irrisório de ínfimo mas de onde ressuma um ridículo universal, ínsito a qualquer singelo acto de ser.
II - ADENDA
#1
Ora, e se falasse do consabido?
#2
Dai pão a quem tem fome e somos todos. E, havendo disso, que o homem é, como se sabe, bichinho industrioso, se ofertam a alguns, tão doces bolinhos e a outros ázimos e duros e secos nacos, que o homem, corre fama, é de sua natural natureza, ferino e cruel. Ademais, nem espanta, se qualquer creatura da Creação abocanha seu bocado, se pode, e, se forte, esse pedaço é maior e, se fraco, menor, até à míngua & decesso. Objectais com a
preeminência de recta-razão mas, meus amigos, essa é fluida e sempre se vendeu por justo & bom que entre ouros e ouropéis & esquálida enxerga os mais nobres rebolassem nos primeiros e os vis vegetassem na segunda. E, adivinhem, caríssimos, quem entre uns e outros, decide o que é de boa
virtude que assim seja e até como Deus quer?
#3
Trincai, trincai, abocanhai que a fome é escura e o Sol em ardor de labuta arde e cresta. Matai, matai em júbilo que antes teu vizinho pereça que te ponha fim aos dias. E, do mesmo modo, aceita a ruína & seu esplendor, a dor, a farpa, a loucura e o olor frorido primeira manhã do mundo.
#4
Do muito tirai um pouco. Que digo? Do muito tirai o tanto que por aço e manha vos for  permitido.
III - VEXATA QUAESTIO
O volume ominoso do ser e viver e estar e de sobremaneira querer. Em primeiro lugar, querer porque se é, vive e está mas também porque, enamorados de nós, se olha um infinito de maximização do que se é, do que há para viver, gozando da ventura do mais aprazível local, condizente, aliás, com a infinda dignidade desta nossa consciência que olha o universo com desdém, dizendo "somos o alto produto de quanta evolução natural e de todo o refinamento de tanta História. Somos, entre eleitos, os escolhidos. Quem nosso primeiro
antepassado sonhou se acaso imaginou a glória de sua estirpe." Afinal, quem garante que o mundo não terminará em luto por vosso decesso?
IV- DELÍRIO PSICOPOMPICO
Internalizada a miséria (interiorizada a loucura) mil vezes não ao dia e à noite, à fecunda maréde luz, rebrilhante esplendor e com espada, acerada-mortal, fio & sangue, m'eviscero. E daí não brote ventura, nem sonho e alor mas espéculo de tudo o que é vil e fel e orto de negrume e hecatombe e sinal de fim: hoje furor e vida, amanhã decesso, e eu d'insana candura, por vós espoliado e morto e mofinante com o ricto de descarnada caveira aqui estarei para vos ver
tombar, jubilantes e com a devida pompa finados para logo ser esquecidos.
Então, sereis irmãos e poder-vos-ei conduzir.
V - ELE É CEGO
D'imersão divinatória é quem de tud'esbulhado tanto já viu. Derradeiro óbolo de cegas tecedeiras que partilham o desenho da urdidura. Feroz contentamento. Sei, a partir de meu catre, quem sobe e quem desce, quem está, quem vai e quem fica.

NÃO
Dai morte, em vida, à vida. Recusa & resiste. Diz, depois, não ao próprio não. E assim com todas as cousas: não ao dia e não à noite, não à ciência de te saberes são, não ao afã e labuta, não à causa sã d'enferm'humanidade, não ao futuro &sp'rança (que isso não é nosso, não pode ser nosso, assim o quer a Sacra-Estultícia). Não à noite, não ao dia e, por isso à luz, inebriante e plena
que teus olhos adentre: faz por não ver. E, sobretudo, não ao tempo. Que são passado e futuro? Oníricas sombras em tua memória e aprazado olvido. Não haja maré nem haja vitória (afogai-vos no Rubicão). Recusa, mesmo, a quietude e abate a coluna onde repousa o sábio. Mesmo que sejam sete luas de fogo & furor e do vulcão saia escória nega a ruína com a feroz resolução com que se rejeita o esplendor. Ouve: apodreces debaixo da pele e já teus membros s'eximem de teu comando. Nem teu valor, esbulhado que foste de tua fazenda.
Mas, já vos interrogastes o que é veramente o não? Pura força negativa, quiçá o último poder inalienável da vária natural natureza do que somos. Seja a vida renúncia, até, a tempo, ao sopro que t'anima e, dizendo adeus à carne também a todo o venal fenómeno. E, assim, quando a fúria dos néscios tanto oprime operando-se a alquimia de negação exaure-se o que furtar: estando mortos-em-vida seremos livres para apreciar a manhã. Absolutos & irrepresos, não ao pão e não à fome, transcendei o humano e, do mesmo passo dai fim, fim ao sobrehumano e ao deus e seus mensageiros. Superando por antítese toda a natural afirmação haverá por único sustento a maquinal mania de
uma una Negação.

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